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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Líquido e impermeável.

Admiráveis Tempos Líquidos

Hoje em dia o mercado de consumo é quem dirige nossa vida, não há como negar.
Seu maior interesse é criar o máximo de células de consumo.

Nos tempos feudais famílias grandes representavam mais mão de obra, agora o que interessa é que hajam novas pessoas como célula de consumo.

Resultado: as relações conjugais só servem ao mercado até a procriação, depois disso é melhor a separação que cria 2 células de consumo ao invés de uma só.

As crianças são empurradas ao consumo tão logo tomam consciência das coisa. Celulares, tablets, computadores,  televisão, shopping, supermercados, roupas, brinquedos  são descobertos por elas muito cedo.

Os pais têm pouco tempo para a educação dos filhos, deixando boa parte dessa missão de lado.

Esse estado de coisas foi bem descrito em Tempos Líquidos onde Balman assenta como fatos reais o que Huxley em Admirável Mundo  Novo havia descrito como ficção.

Neste mundo de Huxley as pessoas eram eliminadas ainda jovens, pois  novos seres poderiam ser criados conforme as necessidades planejadas para a sociedade caminhar.
A incubadora central providenciava as pessoas conforme as castas que iriam ocupar e pronto, pessoas novinhas em folha, adestradas para suas funções e sem a decisão sobre seus destinos.

Nós,  nesses tempos de transição ainda não criamos a incubadora e ainda não dá para pensar em morte determinada pela idade como a do começo da decadência biológica, pois a substituição por enquanto ainda depende do sexo.

Com isso desviamos do roteiro imaginado por Huxley pois vivemos mais tempo que os tais 35-40 anos em que deveríamos ser excluídos da vida.

Sou de uma das gerações iniciais da transição para os tais "tempos líquidos".
Assisti sua criação.
Nasci dentro do ideário romântico e o vejo dia a dia ser colocado de lado.
Não julgo se isso é bom ou mal, só constato o que ocorre.

Há uma dubiedade nas intenções do mundo regido pelo dinheiro, o modêlo romântico ainda é uma mola propulsora importante para o consumo, por quanto tempo não sei.
A arte de há muito vem se desviando dele, apesar de que muito romantismo ainda é criado pois é prazeroso pensar de forma romântica, vende-se aí os sonhos, alegrias, afetos.

A duplicação da célula de consumo se contrasta com a união conjugal, o casa e separa virou regra, é decorrência desses tempos de fluidez apressada.
O ingresso maciço das mulheres no mercado de trabalho lhes deu independência financeira.
Mais independente ficou ainda com os métodos contraceptivos.
Construímos então essas pessoas intolerantes e imediatistas.

Raros são os casais estáveis, já na minha geração são poucos. Nas mais recentes muito mais raros.

Enfim a multiplicação das células de consumo se impôs.
Temos um mundo de pessoas solitárias e emocionalmente desnorteadas, cheias de medos, protegendo-se em uma autoestima falsamente elevada.

Não há tratamento para isso, talvez os mais favorecidos possam ter uma interlocução com algum analista que os faça aceitar mais mansamente os fatos, mas isso não resolve a origem das coisas.

O Tempo e a Impermeabilidade

Como vivemos muito mais que o "mundo novo" previa, vamos construindo uma vida e tratando de defender esse lugar de conforto criado muitas vezes à duras penas.

Essa capa protetora é o que chamo de impermeabilidade.
Ela não é um erro em si, mas limita muito nossas possibilidades de evolução.

Não se trata exatamente de conservadorismo, pois há pessoas revolucionárias ou  inovadoras que nutrem essa impermeabilidade.
Sem nos darmos conta acabamos por tece-la pouco a pouco, e com o avançar da idade ela vai se reforçando.
Definimos assim um microcosmo nosso, difícil de ser penetrado.
Essa impermeabilidade acaba por fechar a vida para novas possibilidades.

Ela pode envolver indivíduos, casais, ou ainda grupos de amigos ou de interesse comum para ficar somente em alguns exemplos.
Me interesso aqui mais pelo que acontece com os indivíduos e um pouco sobre com os casais.

As redes sociais de encontros estão cheias de pessoas tentando se conectar, mas em muitos dos casos, provavelmente a maioria, trata-se de seres bastante impermeabilizados.
Sonham com uma realidade que não se concretiza.
Com um romantismo que requer mais permeabilidade e muito desejo de mudança, que as pessoas não estão dispostas a fazer.

Não faz sentido alguém abrir mão de suas zonas de conforto, em prol de outro que se mantém imutável, então na desconfiança mantemo-nos fechados e amedrontados.
Um encontro nessa conjuntura rígida é muito improvável.

Será que é possível voltar à flexibilidade que as relações pedem?

Afeto e Sexo

No mundo de Huxley a sexualidade foi mantida como força para o encontro de pessoas, desde que o encontro seja só para sexo e diversão.
Não se permite o desenvolvimento de afeto entre as pessoas.
O sexo é tratado de forma banal, livre e sem preconceitos, o que não é de todo ruim.

Talvez a critica mais contundente que a sociedade pensada no "mundo novo" seja a proibição do afeto, pois ele "atrapalha" a serenidade e a paz estabelecida.
Mas o afeto também é uma pulsão que nos move em direção a relacionamentos, conjugais ou não.
Eliminá-lo é tentar robotizar o ser humano, e aí a contundência da critica da ficção, que hoje vai se tornando realidade.
E o estamos fazendo por falta de tempo, por priorizar o ter ao invés do ser.

Mas o medo e a autoestima são forças muito fortes que nos fazem deixar os afetos de lado e nos ater ao sexo. Sofremos menos se não nos arriscamos.
O sexo e os afetos se independeram totalmente.
É mais simples buscar o sexo do que construir afetos.
Não são desejos excludentes, e assim todos andam agindo, separando sexo de afeto e, em muitos casos, desprezando esse último.

Não quero crer que caminhemos para a eliminação dos afetos, do amor.
Temos que pensar em alternativas nesse roteiro para que esses doces sentimentos sobrevivam, pois são em essência o que poderemos levar de bom nessa existência.

Redefinindo o roteiro?

Me assusta esse caminho, quase inexorável, que estamos trilhando rumo ao "Admirável mundo novo".

Nossa afetividade pode ser encontrada em outras relações.
Elas podem manter o coração aquecido.

Ou nem cultivar amigos pode ser priorizado e os corações vão se esfriando e adoecendo?

Com o passar do tempo não há mais o romantismo que tenta juntar esses desejos.
Tentá-lo seria tolice?
O pragmatismo da realidade se sobrepõe aos sonhos, às ilusões dos contos de fadas?

Quanto mais a idade d´agente vai aumentando, mais difícil fica a construção de uma relação conjugal pois ela requer novos eventos com um possível novo cônjuge.
Isso pede um movimento contrário àqueles assentados na tal zona de conforto que nos impermeabiliza.
Agrava-se outro fato que ocorre paralelamente à impermeabilidade, que é a sedimentação do comportamento.
Perde-se a verve de viver, não um viver expectante, de quem parece que já fez tudo o que devia na vida, mas  uma pulsão de querer mais dela.

Casais ou Grupos

Impermeabilidade a duas ou mais pessoas são também normais.
Casais que constroem um mundo difícil de penetrar, fechado em seus ritos e insatisfações são o constructo resultante.
Quando há um encontro conjugal bem cedo na vida, e este se permanecendo, a capa de impermeabilidade pode abraçar o casal, o próprio relacionamento.

Pessoas solitárias que encontram em grupos de amigos uma complementariedade, tendem a criar também uma impermeabilidade que envolve o grupo.
As pulsões sexuais podem não ser satisfeitas dentro do grupo e acabam por ser procuradas individualmente.


Só um aplicativo de encontros registra 26 milhões de combinações todos os dias.São 52 milhões de  expectativa de relacionamento.
Quanto desse total é movido somente pela sexualidade ou pela busca de uma companhia não é revelado, assim como o total de pessoas que participam destas redes.

Contracultura - O Movimento Hippie

Uma tentativa de disruptura com esse roteiro criado pelo consumo brotou e foi reprimido nos anos 60 e início de 70.
A ideia básica foi a de se contrapor ao status quo que acabou se desenvolvendo no pós-guerra.
Um movimento que nos EUA focou-se contra a guerra e ataques da nação contra Vietnã, Cambodja e Laos, mas que ia muito além da não pregação da não violência.
Pregava na verdade a paz e o amor como força das mudanças esperadas.
Havia um sentimento gregário.

Havia uma busca de liberdade com disruptura com a sociedade da época.
Pregava-se naturismo , a vida em comunidade e o "amor livre" como novos preceitos de convivência.

O termo "amor livre" tentava explicar uma alternativa quanto à sexualidade que consistia na possibilidade de se praticar sexo com qualquer pessoa que tivesse alguma ligação afetiva.
Não era zona, nem bacanal.
Mas tendo afinidade e afetos por outra pessoa, o sexo seria livre e natural.
Minha pouca experiência sobre esse tempo me faz lembrar que, na prática, as ligações mais fortes entre duas pessoas acabavam aparecendo, e quando acontecia era difícil aceitar "aquela pessoa" transando com outra. Simples assim, era ciúmes que,  por regra não deveria existir, mas que por amor se manifestava e fim.
Ou seja, o sexo se feito com afeto e o coração aberto com várias pessoas, hora ou outra pode acabar por conjugar duas delas.
Como disse não se tratava de um bacanal, mas de pessoas de um certo grupo com vida comunitária, muito próximas.

Na diversidade de expectativas foram adotados vários tipos de comportamento diante dessa liberdade.
Penso que começou aí uma independência entre sexo e amor.
Como os afetos são constructo mais difícil, o sexo se tornou a parte fácil da experiência.

Foram doces anos de amores plurais, corações mais puros e vida cheia de ideais que se foram, ou melhor, foram absorvidos pela sociedade de consumo no seu pior.

Espiritualidade conta?

Vejo o ser humano dividido em 4 partes que chamo de Pirâmide do Ser.

A vida me mostrou que há um mistério nela que, agnóstico que sou, aceito mas não julgo.
Há mais que a causalidade aristotélica na nossa trilha aqui no planeta.
Quando há um encontro casual, ele pode desenvolver uma empatia entre as pessoas que pode se desenvolver em afetos de vários tipos.
Mas há algo também casual, que nos desperta uma atração especial por outra pessoa, e o afeto pode se desenvolver para o amor.
Mas mesmo isso não é suficiente para conjugar duas pessoas.
Para um coração vazio é fácil se apaixonar e cair de amor por alguém, nossa emoção pede.
Uma paixão pode facilmente desembocar em relações sexuais, até muito boas, nossos instintos as pedem.
Será que isso é o que basta?
Penso que não, pois há na nossa trilha da vida algo que mágico que nos coloca em situações e frete à pessoas para que consigamos ir adiante em nossa evolução.
Acredito muito nisso.
Algumas que devemos trazer para nossa história, outras que não o devemos.
E por mais amor e paixão que possa existir, há casos em que a conjugação não será proveitosa, com nenhuma das partes ganhando nada.
Essa não é uma boa conjugação.
Viemos aqui para aprender e ensinar, conjugar representa nos fazer melhores, com essas duas funções.

Mas quando conseguimos olhar para o alto da nossa pirâmide, nos elevar um pouco do triângulo base ( que é do plano terreno ) podemos sentir o mistério da vida. Meditação, oração, danças circulares, a religião e muitas outras coisas nos ajudam nisso.
Há encontros que nos provocam uma mágica estranheza, que nos provoca uma ligação quase imediata com alguém.
Penso que isso ocorre para que duas pessoas possam conjugar experiências importantes para ambas ou ao menos para uma delas.
Devem ser aproveitadas sempre que possível pois irão ser proveitosas, mesmo que pareça que só uma pessoa esteja tendo ganhos na relação, pois por vezes é isso o que o mistério da vida nos pede.

Tentando Redefinir o Roteiro do "Mundo Novo"

A realidade atual é de que o sexo é banalizado, mesmo que muitas vezes disfarçadamente.
Pesquisas da USP mostram que 75% dos homens fariam sexo por puro prazer. Já esse percentual para as mulheres antes "românticas" é de 57% um crescimento de 10% nos últimos dez anos. Isso mostra que caminhamos céleres para uma igualdade de comportamento e, o mais importante, conduta majoritária na sociedade.

A pessoa entra na rede e posta que não está ali por sexo, mas nos primeiros encontros solta as amarras e resolve trepar.
A expectativa é a trepada, não vamos ser hipócritas.
Não é pecado algum.

Mas fica a pergunta: será que a combinação sexual é mais importante que o encontro de personalidades, projetos de vida, assuntos de interesse, expectativas do viver, do desenvolvimento mínimo de afetos?

Se ela é tão imediata seria uma linha de corte nas seleções e francamente, sem um bom sexo as relações não se sustentam.
Portanto não há mal em conhecer o como o sexo rola com a pessoa sem hipocrisia.
Mas se estamos invertendo a ordem estabelecida até pouco tempo atrás, onde o sexo viria depois, não precisamos jogar fora as outras combinações que a relação pode propiciar.

E como a prática está posta, resta pensar em um roteiro onde, depois do sexo gostoso, haja a busca de outros valores naquela pessoa que partilhou essa intimidade contigo.
Construir um conjunto de valores sobre o outro de modo a poder a ele se afeiçoar.
Manter uma relação amigável, colocá-lo em seu círculo de vida, e nos aproximarmos mais dos tempos da contracultura.

Com isso estaríamos rompendo com o caminho que nos levará ao que Huxley preconizou.
O afeto e o amor poderiam voltar a ser algo importante.
Conversar sobre ele, juntar amigos, amá-los no singular ou plural.
Talvez reconstruindo o ideário do Paz e Amor, num mundo menos ingênuo do que éramos nas décadas de 60-70, mas mais fortes ainda do que o fomos então.

Talvez, e só talvez mesmo, esse movimento poderia ser retomado ainda por nós, "envelhescentes", inquietos, que não perderam a verve e que têm um pouco da boa história nas veias, e a vivacidade de se manter vivos, atuantes.

Esse processo não seria fácil, e dificilmente exitoso caso não se tenha uma estratégia bem elaborada.

O que mais acontece é pessoas trafegando numa linha entre seus instintos e sua racionalidade, que faz com que o tesão aconteça e o racional lhe diga "porque não?".
Teríamos que partir dessa realidade atual e propor gradativamente um desvio nas condutas favorecendo a afetividade e o amor.

Caminhando para o novo roteiro

Para poder entrar nesse processo pretendido tenho que repensar meus condicionamentos românticos, algo que me é um tanto caro, afinal fomos talhados nesses dogmas.
Mas fazendo isso me ponho a viver a realidade atual, a ver o futuro tal como se descortina.

Doce o verso do Cazuza que dizia "não quero não vou não quero" quando do chamamento da  morte iminente.
Meu emocional está assim, em um estado de "não quero, não vou, não quero".
Mas só assim poderei entrar nesse mundo líquido e esquisito.
Não sou mais o príncipe encantado e descobri que "as fadas e os gnomos podem existir" parafraseando novamente o compositor, mas não os príncipes as princesas.
Elas são invenção do pior que a humanidade tinha a oferecer.

Depois preciso ressignificar o que é o afeto e o amor.
Huxley força o desprezo a eles, contrariamente eu quero que existam de nova forma.
Ele brilhante que foi, talvez tenha previsto algo que eu ainda não consigo abdicar que é o amor, uma emoção que transcende momentos, algo que faz explodir o coração, não como pulsão instintiva, da carne, mas como sensação da alma, da elevação do nosso ser.
Espero não estar vivo para essa abdicação.

Fato é que nestes tempos líquidos as pessoas mesmo que impermeáveis, não conseguem prescindir do sexo.

Há que se discutir o sexo, a sexualidade, a tansa, pois é uma pulsão de nossos instintos, ao menos para a grande maioria das pessoas.
O afeto por vezes é usado como mero mote para que as pessoas se envolvam o necessário e suficiente para cair na cama, ele não é o objetivo da relação porque representa muito trabalho e alto risco de se machucar.
O medo reforça os contra-argumentos para não se colocar emoções na pauta das relações.

Então vamos parar com a hipocrisia.
Pessoas desejosas de sexo, sem pecado, entram nas redes de relacionamento falando que querem uma companhia, um relacionamento estável, assim ou assado, que não é só sexo, mas aos primeiros encontros falam claramente que gostam de sexo, de praticá-lo, e se possível JÁ!

Não gosto dessa hipocrisia, não gosto de mentiras.
Como poderemos aproximar as pessoas despojando-as de toda essa impermeabilidade, de todos esses medos e comodismo é algo a ser proposto.

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